Fonte: Folha de São Paulo
Foto: Divulgação
Apesar de ser item de uso obrigatório em viagens de ônibus e de reduzir o risco de morte em acidentes rodoviários, o cinto de segurança é equipamento constantemente deixado em segundo plano por passageiros, empresas e poder público no país.
Incrementar a fiscalização e a conscientização dos usuários é tarefa que volta a ser debatida, mesmo que timidamente, após outra tragédia.
Há 11 dias, 18 pessoas morreram em um acidente com ônibus de estudantes na rodovia Mogi-Bertioga, em São Paulo -muitos dos passageiros viajavam sem o cinto.
A legislação é clara: o Código de Trânsito Brasileiro estabelece que todos os passageiros e o condutor de qualquer veículo, com exceção de ônibus que permitem o transporte de pessoas em pé, precisam usar o cinto. O descumprimento da lei é infração grave, com multa de R$ 127,69 e autuação de cinco pontos na carteira do motorista.
Além disso, uma resolução da ANTT (agência que regula o transporte interestadual rodoviário) determina que os condutores de ônibus precisam informar aos passageiros, antes do início de qualquer viagem, sobre a obrigatoriedade do uso do equipamento. Se não o fizerem, as empresas estão sujeitas a multa de R$ 1.528,72.
Levantamento feito pela Folha a partir de dados disponibilizados pela ANTT mostra, no entanto, o quanto essa fiscalização, sob responsabilidade de técnicos da agência e da Polícia Rodoviária Federal, é tímida no país: em mais de 1,2 milhão de viagens nos primeiros três meses do ano, apenas 194 multas foram aplicadas, 0,016% do total de deslocamentos.
Somados os últimos quatro anos, foram somente 1.261 multas desse tipo no país.
A reportagem entrou em um ônibus que partia de São Paulo para Piracicaba e constatou que, de 26 passageiros, 7 estavam sem cinto. “Trabalho com ônibus desde 1978 e nunca vi alguém ser multado por cinto. A fiscalização é muito fraca. O motorista não pode exigir que as pessoas usem, então vai da consciência de cada um”, afirmou o inspetor Saturnino Francisco, 57, que trabalha para a empresa Cometa na rodoviária do Tietê.
Para Rodolfo Rizzotto, coordenador do programa SOS Estradas, não basta a legislação punir apenas motoristas.
“É preciso que a lei mude e o próprio usuário seja multado por seu comportamento, que põe em risco a vida de outras pessoas”, afirma. Ele também defende que passageiros sejam retirados do veículo se não usarem o cinto.
Sob a legislação atual e com fraca vigilância, os passageiros também não fazem sua parte para aumentar a segurança de suas viagens.
Levantamento da Artesp (agência de transportes de SP) em 174 viagens no fim do ano passado mostrou que mais de 60% dos usuários de viagens intermunicipais ignoram o cinto de segurança.
A analista de finanças Isabela da Silva Koki, 25, utiliza ônibus fretados diariamente nos 40 km entre Mairiporã e São Paulo, onde trabalha.
“Tem cinto no ônibus, mas não uso. Vi o caso dos universitários em Mogi, mas nem pensei em acidente, continuo sem colocar o cinto. Os motoristas não avisam”, afirma.
Segundo pesquisa de 2015, também feita pela Artesp, o desrespeito à lei é muito menor em outras categorias: só 9% dos motoristas de carro dirigem sem cinto; entre os caronas, 11%, e entre ocupantes de banco traseiro, 38%
INEFICAZ
Não há dúvidas de que o uso do cinto de segurança em ônibus reduz o risco de lesões graves e de mortes em acidentes. Mas especialistas ouvidos pela Folha alertam que os modelos atuais disponíveis oferecem proteção insuficiente para os passageiros.
Enquanto os cintos de três pontos são obrigatórios em carros e caminhões, uma resolução do Contran (Conselho Nacional de Trânsito) autoriza que assentos de ônibus tenham apenas o equipamento de dois pontos, também chamado de abdominal.
“Instalar cintos de segurança de três pontos para todos os passageiros nos ônibus é uma absoluta necessidade”, afirma Dirceu Rodrigues, chefe do departamento de medicina de tráfego da Abramet (Associação Brasileira de Medicina de Tráfego).
Rodrigues afirma que o cinto abdominal protege integralmente apenas o quadril dos viajantes -e nada mais.
“Cabeça, coluna cervical, tórax e abdômen continuam totalmente expostos a lesões em frenagens bruscas ou colisões frontais, por exemplo”, diz o membro da Abramet.
O especialista prossegue na comparação: “Um cinto de três pontos oferece proteção de 70% para a coluna, de 56% para cabeça e tórax, e 45% para o abdômen -enquanto para o cinto de dois pontos esses índices são nulos”.
A projeção do tronco sobre as coxas em um acidente gera o que os médicos chamam de “síndrome da tesoura”, acarretando lesões graves e gravíssimas que não são perceptíveis na hora, como hemorragias internas.
“Se a cabeça for projetada, ainda que o quadril esteja fixo ao banco, pode ocorrer até mesmo traumatismo craniano”, declara Rodrigues.
Estudos da própria Abramet mostram que o uso do cinto de segurança de três pontos reduz em até 75% o risco de morte em um acidente para passageiros no banco traseiro de um veículo e em até 45% para quem está no banco dianteiro.
Apesar da comprovada importância desse equipamento, a Comissão de Viação e Transportes da Câmara dos Deputados arquivou projeto de lei que tramitava desde 2012 e tornava obrigatório o uso do cinto de três pontos também nos ônibus.
Responsável pelo parecer que levou ao arquivamento do projeto, o deputado Marcelo Matos (PHS-RJ) apontou “inviabilidade técnica da medida” e seu “forte impacto na indústria, que teria investimentos altos com pesquisa, tecnologia, maquinário e linhas de produção”.
“Infelizmente o lobby das empresas fabricantes e montadoras de ônibus no país fez com que o projeto fosse abandonado”, diz Rodrigues, da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego.
A legislação da Austrália, por exemplo, obriga que ônibus ofereçam os cintos de três pontos desde 1994. Para Rodolfo Rizzotto, coordenador do SOS Estradas, “esse é o futuro no Brasil”.
No ano passado, de acordo com dados da Polícia Rodoviária Federal, o país registrou 7.165 acidentes com ônibus em rodovias federais. Em 430 desses casos houve vítimas fatais.